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quarta-feira, 11 de maio de 2011

O processo criativo de Fernanda Morais


Olá, leitores da Escrita Fina! Fico feliz por poder escrever aqui para vocês! Já conversamos por aí através das ilustrações que produzi para alguns livros da Escrita Fina, mas hoje vou ter que me virar como posso com essa linguagem cheia de palavras.

A Laura me pediu que falasse um pouco sobre a parte que me cabe dos bastidores dos livros, o processo criativo da produção das ilustrações. Assim, seria conveniente começar esse texto desmistificando a criatividade. Ao contrário do que muitos pensam, uma solução criativa não é fruto de um súbito lampejo de inspiração (se os ilustradores dependessem disso estariam fritos!), e sim o resultado de um longo processo que exige muito trabalho e o uso de algumas técnicas. A criação começa com uma ou algumas ideias iniciais, e segue com muito trabalho em cima delas. Para que as ideias iniciais comecem a surgir, nada como um HD interno cheio de informações e referências e alguns parafusos a menos. Como referência, tudo está valendo: o livro que lemos, as pessoas que conhecemos, os lugares que visitamos, os filmes a que assistimos, as comidas que provamos, os sentimentos que experimentamos, o que vivemos. E para que tudo isso venha à tona, o mais importante é não tolher nossos pensamentos (vamos combinar que os tais parafusos a menos não nos fazem muita falta). As ideias criativas vêm de uma sucessão de associações. Quanto mais longe forem essas associações, mais inusitadas e únicas serão nossas ideias.

Essa é a base de qualquer processo criativo. A partir daí cada ilustrador segue seus métodos. O meu é assim:

Primeiro recebo o texto que terei que ilustrar. Imprimo, leio uma vez, e outra, e outra. Leio em voz alta, interpretando o texto. Leio para o espelho, leio para alguém. Leio um pedaço, depois outro. Aí eu prefiro fazer uma pausa e só continuar no dia seguinte. Nessa hora está passando um furacão pela minha cabeça. Pouco a pouco as ideias vão se assentando e algumas imagens começam a surgir. Volto ao texto, agora com uma lapiseira na mão. Começo a separar as informações e pensar na divisão do texto pelas páginas do livro. Esse é um ponto bastante técnico. É preciso manter a coerência e dar um ritmo interessante a narrativa, segurando o leitor quando tiver que fazer suspense, acelerando a leitura quando for preciso para não ficar monótono. O livro deve ser pensado como um todo, e não como páginas simples ou duplas independentes umas das outras.

Dividido o texto, vou anotando ideias sobre o que desenhar em cada página, e em seguida começo a trabalhar no espelho do livro. Em uma folha de papel desenho vários pequenos retângulos, representando as páginas do livro. Neles vou desenhando um esboço que é tão esboço que ninguém entende o que está representado ali, só eu mesma. Ele serve para que eu comece a entender a distribuição dos pesos das ilustrações e as composições de cada página. Os desenhos são muito simplificados e as formas ainda não são bem definidas. Funciona como um storyboard. É importante analisar as páginas individualmente e também em sequencia para que o ritmo do livro se ajuste ao da narrativa. Por isso é importante, pelo menos para mim, que o espelho esteja todo em uma página, para assim avaliar o todo. Isso tem a ver com uma mania esquisita que tenho: desenhar tudo bem pequeno. Acho que eu penso que, se posso ver o todo de uma só vez, tenho mais controle sobre o desenho. Não sei, vai entender…

É nesse momento que acontece a parte que mais gosto da ilustração, que é inventar a minha própria história. Gosto de procurar as lacunas no texto, acrescentar informações, criar personagens que não existem e desenvolver pequenas histórias paralelas. Por exemplo, se o autor não localiza os personagens no tempo e no espaço, vou criando um cenário coerente com a narrativa, sempre explorando as infinitas possibilidades. Ilustrar um livro é muito mais do que desenhar o que já está escrito. Assim como a escrita é uma linguagem, a ilustração também é. Ela tem força suficiente para comunicar ideias e sentimentos através das imagens. Por isso ela deve complementar o texto, e não estar subjugada a ele. Se a ilustração não acrescenta informação, ela não tem sentido, é meramente um enfeite. Claro que eu também adoro fazer graça e inventar minhas brincadeiras na ilustração, sem roubar a cena, apenas acrescentando elementos interessantes.

Depois disso tudo, começo o estudo dos personagens principais. É nessa hora que meu caderno rabiscado entra em ação, é nele que trabalho todos os esboços. Desenho, redesenho, desenho por cima. Claro que meus desenhos iniciais são bem sujos. Depois disso vem os cenários, e depois as cenas como elas foram descritas no espelho. Tudo vai começando a se encadear, embora eu tenha outra mania esquisita que às vezes me atrapalha um pouco: desenhar por partes. Dificilmente faço uma cena completa. Geralmente desenho os vários elementos que aparecerão em uma página separados, depois escaneio tudo e monto o esboço no photoshop. A vantagem desse método é poder explorar e trabalhar mais a composição de cada página, uma vez que o computador permite que os elementos sejam acrescentados ou retirados facilmente, bem como também possam ser redimensionados, rotacionados etc. Assim chego a melhores resultados. Em seguida passo a limpo esses esboços, monto um arquivo com as imagens e o texto do livro já posicionado e mando para a editora. Quando a Laura, a Luiza e a Carol aprovam todo o material começo a finalizar as ilustrações. Trabalho principalmente com ilustração digital, eventualmente acrescentando algum detalhe de trabalho manual. Então, a partir daí sento na frente do computador e começo a redesenhar tudo. Viajo nos detalhes e nas texturas. É um trabalho bastante envolvente. Depois que começo, o difícil é parar. Gosto de trabalhar nos detalhes, sempre penso no que poderia acrescentar. Por isso basicamente só termino o livro quando acabou meu tempo para trabalhar nele e já é hora de ter a aprovação final do pessoal da editora para enviá-lo para a gráfica.

Ufa! É muito trabalho! Mas vale a pena! Ver o livro pronto, recém-chegado da gráfica, compensa as horas de sono não dormidas. Ver o pessoal da editora satisfeito com o livro é a cereja do sundae. E depois ver as crianças lendo e se divertindo com os livros é a calda de chocolate com castanhas! Gostosa assim foi a experiência que eu tive nos dias 4 e 6 de maio nas duas filiais da escola Aldeia. Agradeço ao pessoal do Gente que Lê (http://www.gentequele.com.br/) por me chamarem para conversar com as crianças sobre o primeiro livro que ilustrei, Lady Fofa, com texto da Carla Yanagiura, publicado pela Escrita Fina, uma vez que ele foi adotado pela escola para ser trabalhado com alunos de diversas idades. As fotos do evento são essas aqui publicadas. Os trabalhos que as crianças desenvolveram estavam incríveis! Elas conheciam cada detalhe da história. Os mais velhos chegavam superentusiasmados, com um bombardeio de perguntas já preparado. Os mais novinhos (4, 5 anos) se encantavam com a novidade da visita e com a história que eu ia contando. Estavam tão envolvidos que, quando perguntei “E aí? Qual vestido vocês gostaram mais?”, o silêncio foi quebrado por uma gritaria de “esse aqui!”, “o rosa!”, “o de coração!” e uma correria para apontar no livro os vestidinhos escolhidos. Foi lindo! Adorei conhecer a equipe da escola Aldeia e também foi uma sorte e um prazer conhecer o Clóvis Bulcão, autor do livro Noel – o menino da Vila, e a Cristina Villaça, autora de Viva eu, viva tu, viva o rabo do tatu!, todos da Escrita Fina, sobre os quais os alunos também desenvolveram diversos trabalhos.

Nessas visitas pude comprovar de perto que fazer o livro é só o começo. Sua produção não determina o fim do processo criativo, e sim o início do desencadeamento de diversos processos criativos que se desenvolverão na mente de cada pequeno leitor. É um privilégio poder fazer parte disso tudo! Fico feliz que minhas ilustrações tenham conquistado seu espaço no HD dessas e de outras crianças e que tenham algo a contribuir.




fotos: Fernanda Morais

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