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terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Do Mar

 O livro Do Mar, de Mirna Brasil Portella e ilustrado por Laurent  Cardon,  ganhou uma linda resenha elaborada por Márcio Vassalo. Leiam abaixo e deliciem-se, como nós nos deliciamos ao lê-la!

COM UMA VONTADE DESEMBESTADA DE ONDA E ESPUMA

“Do Mar”, novo livro de Mirna Brasil Portella, é uma declaração de amor às nossas escolhas mais autênticas e essenciais


Há histórias que nos puxam com força para dentro delas e só nos devolvem ao mundo depois que as terminamos.

Outras não nos devolvem mais, porque não terminam é nunca dentro de nós.

“Do Mar”, de Mirna Brasil Portella, é uma história que nos atravessa sem pressa, mesmo depois que aparentemente desatracamos dela.

Publicado pela Escrita Fina Edições, com sensível coordenação editorial de Laura van Boekel e belas ilustrações de Laurent Cardon, o novo livro da Mirna Portella bem carece trazer na capa aquele aviso que aparece na beira de mar que desatina:

PERIGO - CORRENTEZA

Afinal, quando entramos nesse livro da Mirna, somos puxados pela poesia da autora para o fundo dos nossos vislumbres mais íntimos, dos movimentos que mais nos paralisam e das paralisias que mais nos movimentam, feito olho de poeta quando para em lindeza que ninguém repara.

Reparadora desde menina, a dona dessa história, Maria do Mar, cresce vendo de perto a sina das mulheres que esperam por seus homens pescadores.

“Com olhar de maré baixa”, as mulheres da aldeia onde Maria vive passam quase o tempo todo de suspiro ancorado e vontade guardada para não sei quando.

Sem nenhuma intenção de se tornar uma guardadora de vontades com prazo de validade para minguar, Maria tinha sorriso de quem duvida, encontrava cidades inteiras dentro de conchas, e passava o dia virando belezas pelo avesso.

“Achava que o fundo do mar era o céu de cabeça para baixo (...).Tinha olhos de ver e de imaginar. E foi assim, com esse jeito de ver um pouco mais, que ela desenhou a sua história no horizonte, onde todos os dias o sol nascia para acordar o mundo”, conta a Mirna.

E o que será que mais acordava a Maria na fundura?

Será que ela queria partir para o mar, pelo desejo de descobrir, pelo prazer de provar, pela fissura de chegar?

Será que também queria ir pelo impulso de voltar, contar às outras mulheres tudo que viu e dar corda em moça parada?

O que dava tanta corda na ideia da Maria?

Mais para provocar perguntas de abrir clareza por dentro do que para trazer respostas de ponto final, Mirna Portella escreve:

“Em aldeia de pescador, todo mundo vive da pesca, mas o costume da pesca é do homem. O homem é que sai para o mar, e a mulher espera o homem chegar”.

Maria esperava pelo pai, que enchia o ouvido da menina com as fantasias e estranhezas mais irresistíveis, e aumentava nela aquela vontade desembestada de onda e espuma.

Quando o pai chegava, a Maria queria saber de tudo: “Como era lá em alto-mar quando chovia, quando ventava, quando era noite, quando era dia, como eram os peixes das águas fundas, o tamanho das ondas do meio do mar”...

No meio de tantas indagações sem tamanho, de que forma a mãe da Maria olhava para ela?

“A mãe dizia que a menina olhava para o mar com olhos de saudade. E era mesmo. Era saudade do pai, que trazia para ela o mundo de depois do horizonte. Toda vez que ele voltava do mar, trazia a saudade do que ela nunca havia vivido, mas que, na fala do pai e na sua cabeça de imaginar tão bem imaginado, era parecido com o mundo das conchas”.

Com o seu texto de sutileza mergulhada, a escritora nos mostra que uma cabeça de imaginar tão bem imaginado pode quebrar tabus, interromper danações, mudar o rumo das nossas pegadas.

“A mãe sofria só de ver. Já sabia o que vinha pela frente: menina com saudade de pai pra depois virar mulher com saudade de marido. Não era essa a sina das mulheres? É que ela não sabia que Maria já tinha outro destino, quer dizer, já tinha a ideia de ter outro destino, porque destino é coisa que cada um constrói como quer, quando o querer é bem forte e consegue encontrar a coragem”.

Movida por uma coragem relada num querer bem forte, a verdade é que Maria “foi crescendo com a mania de achar que as coisas podiam ser do jeito que a sua imaginação queria”. E a imaginação é uma despertadora de gente, concebida na fundura.

Concebida num dia em que o pai voltou para casa com uma urgência indizível de terra, Maria nasceu feito maresia indomada. “(...) a mãe cismou de achar que a filha havia sido um presente do mar trazido pelo pai. E foi por isso que resolveu meter mais um mar no nome da menina: Maria do Mar. Assim foi.”

E assim, quem poderia domar a Maria do Mar, que nasceu de um desejo tão forte de ir?

Para atender a esse desejo, um dia, o pai da menina “partiu com ela e meia dúzia de homens em um barco à vela carregado de tarrafas, varas, anzóis e muita vontade de mar”.

Depois de partir, já embarcada, Maria conheceu superfícies brilhadas, tempestades amansadas no braço, belezas descortinadas, solidões cortadas no vento, uma flor despertada na areia...

Mas de nada adiantaria ver tudo isso, se a Maria não soubesse imaginar.

Como diz o Mario Quintana: “As pessoas sem imaginação podem ter tido as mais imprevistas aventuras, podem ter visitado as terras mais estranhas. Nada lhes ficou. Nada lhes sobrou. Uma vida não basta apenas ser vivida: também precisa ser sonhada”.

Na volta do mar, mais imaginativa do que nunca, Maria contou às mulheres da aldeia que “o mundo é grande e é preciso sonhá-lo para querer descobri-lo”.

Mais do que tudo, o novo livro da Mirna Brasil Portella tem grandeza de mar alargado no olho, e é preciso descobri-lo para sonhá-lo.

Ah, e o Quintana nos pesca de novo: “Não é o leitor que descobre o poeta, mas o poeta que descobre o leitor e o revela a si mesmo”.

Mirna Portella é uma descobridora de leitores.

Agora não perca mais tempo na proa desse texto aqui. Pule de cabeça no livro da Mirna, flutue no alto-mar da poesia, e se entregue, se descubra, se revele.